Rogério Ceni; o voto salvador, o Mito e a trajetória de um ícone do futebol
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De Vitor Birner
Chamar Rogério Ceni de um grande goleiro, craque entre as traves ou algo nessa linha não resume o tamanho do jogador para a história do esporte e principalmente do São Paulo.
Conseguiu subir mais degraus além dos que a técnica permite, ao ser quem o torcedor reverencia, que o faz sentir representado em campo, fato raríssimo no futebol atual de ídolos sazonais, onde é cada vez mais difícil enxergar o jogador com apenas um manto sagrado.
Talvez não tenha terminado a carreira deste ícone na agremiação do Morumbi.
Pode ser a última vez, se a configuração do futebol contemporâneo não for alterada, que qualquer clube de nosso país acolheu, ensinou, contribuiu para o crescimento do ser humano com sonho de ser jogador, e que a retribuição tenha sido tão plena, pois não pode ser esquecida em nenhum relato honesto sobre o último quarto de século dentro dos gramados.
O mais longo elo e herança da Telê Santana foi encerrado ontem, em noite com magistral participação da nação são-paulina, atualmente com orgulho ferido pela realidade da instituição, mas curado não sei até quando pelo orgulho e satisfação de presenciar o 5×3 no jogo entre seus esquadrões campeões da América do Mundo.
Além da fronteira
Os feitos, tamanho e identificação de Rogério Ceni com a agremiação são conhecidos nas Américas, onde 'periodistas' e 'hinchas' têm sempre palavras especiais reservadas ao artilheiro.
Não foram poucos os relatos de amigos em viagens pela Argentina, Uruguai, Chile e México, que nas conversas cobre futebol escutaram elogios ao goleiro; Juca Kfouri, por exemplo, em terras astecas, pegou um táxi e o condutor era fã do jogador.
Quem acompanhou a trajetória dele desde o início, sabe que demorou para conquistar isso e despendeu muito esforço.
Sonho quase impossível
Zetti, por mérito, é um dos goleiros mais idolatrados do São Paulo.
Jogou no time espetacular, [melhor que o de 2005] onde fez 'milagres', ganhou Libertadores, Mundiais, o campeonato nacional, estadual e entrou para o rol dos maiores jogadores do clube na posição, no qual o trio principal era formado por King, Poy e Waldir Peres.
Não foi das missões mais simples substituir alguém tão importante.
O rapaz que saiu de Sinop para as categorias de base alojadas no Morumbi queria fazer parte daquilo, mas assumiu o lugar do consagrado no momento do declínio de qualidade no elenco.
Era impossível para ele e qualquer outro, na época, manter o padrão. Até hoje o país não teve outro time mais forte que o montado pelo eterno mestre Telê Santana.
Nenhuma torcida com o hábito de assistir futebol arte aceita, facilmente, algo pior.
No mínimo quer a manutenção dos resultados.
O investimento da Parmalat na formação de outra máquina de jogar futebol, em uma equipe com a qual o São Paulo rivaliza, tornou ainda mais difícil a realização dos sonhos de ganhar tudo.
Em meio a tanta pressão, Rogério Ceni tinha apenas um benefício raro.
O conhecimento dos caminhos, por ser reserva em 1993, a seguir.
Estágio
A saída de gol era uma das dificuldades de Rogério Ceni.
As duplas de zaga e os times no início dele como principal goleiro do elenco eram, se tanto, medianas, o que exigiu mais do goleiro durante os jogos.
Tenho convicção que tal fragilidade o fez ser melhor.
Falo de alguém conhecido por ser o primeiro a chegar e último a sair do CT da Barra Funda.
Aprimorou tal fundamento e tantas outras virtudes, entre elas o passe, a reposição de bola que observou Telê Santana exigir muito de Zetti, e depois as cobranças de faltas.
Ainda um coadjuvante
O troféu do estadual em 1998, primeiro que ganhou como principal goleiro, quando o torneio ainda tinha relevância, foi acima de tudo do Raí.
O São Paulo perdeu o jogo de ida para o Corinthians e o camisa 10 do PSG chegou apenas no jogo seguinte, brecha pífia que o regulamento permitia. Nelsinho Baptista fez, então, o simples e preciso.
Colocou o recém-contratado na meia, tal qual o óbvio exigia, adiantou Denilson, que com seu egoísmo e dribles perdia as bolas no meio de campo e fornecia muitos contra-ataques aos oponentes, como atacante pelo lado onde era mais difícil marcá-lo, deslocou França que exercia essa função para a de centroavante, posição na qual rendia mais, e mandou Dodô, atleta de pouca raça e que sumia diante do Alvinegro, à reserva.
O goleiro, apesar de importante, não pode ser considerado como uma das referência do êxito no torneio.
Como protagonista
O Santos, em 2000, foi o clube contra o qual Rogério Ceni foi campeão pela primeira vez como protagonista.
Tinha evoluído muito como goleiro, se tornado ídolo da torcida ao lado de Raí e talvez do Vágner no elenco, e fez, de falta, o gol no empate que garantiu o êxito.
Política quase interrompeu história
Paulo Amaral, eleito presidente em 2000, fez o possível para finalizar a história do goleiro na agremiação.
Rogério Ceni foi, naturalmente, aos poucos, assumindo o papel de líder, pois era o ídolo da torcida.
O cartola não se incomodava com os resultados de campo e geria a agremiação como se as prioridades fossem a manutenção das finanças equilibradas e a negociação de jogadores, e não o aumento de conquistas dentro dos gramados.
O goleiro ficava indignado, pois Palmeiras e Corinthians eram melhores e não havia perspectiva alguma, como aquele gestor, de isso ser alterado.
Na época mais reativo, não fazia nenhuma questão de, internamente, silenciar sobre o tema.
Em ascensão técnica e atuando no São Paulo com cara de loja de jogadores, o mercado especulou, então, sobre propostas para ir embora.
Falou-se, na época, em fases distintas, de Corinthians, Internacional, o clube predileto de Rogério Ceni na infância, e do Cruzeiro.
A outra, que gerou maior entrave, foi a sondagem do olheiro do Arsenal, pois os 'gunners' queriam alguém para substituir David Seamen, quase quarentão, e e o ideal seria que houvesse, antes, prazo para o contratado se adaptar .
Aos que não creem, lembro que o britânico, em 2003, deixou o Highbury,
Questionei o José Dias, diretor de futebol, sobre a possibilidade de ir para o Alvinegro.
Ele afirmou que isso não aconteceria, e que prometera e acertara o aumento salarial do goleiro.
Logo em seguida surgiu a polêmica da falsificação da oferta, que rendeu 28 dias de suspensão das atividades de Rogério Ceni com o elenco.
O prazo foi estipulado porque a CLT permitia até 29 com suspensão de salário, pois 30 representariam o afastamento e a obrigação de ser pago.
O presidente poderia simplesmente determinar que o goleiro não atuaria mais no São Paulo.
Preferiu irritá-lo como possível.
O inesquecível fico
No buffet na Avenida Angélica, após o anúncio do afastamento e o período de silêncio, Rogério Ceni deu entrevista dizendo que permaneceria, contrariando a expectativa da opinião pública, que tinha convicção sobre a saída.
Origem do apelido de Mito
Não sou de ficar destacando meus furos de reportagem ou analises sobre futebol que contrariam a maioria e depois se mostram concretas, apesar de isso render audiência.
Auto-elogio é algo prepotente, piegas, ainda mais por apenas cumprir minhas obrigações profissionais. Jornalismo, creio, deve ser um exercício de humildade em prol do coletivo, o rico aprendizado, e não o alimento do ego faminto.
Não encare o que descreverei como um mérito, pois foi coincidência.
Fui um dos únicos profissionais de imprensa que apoiou publicamente o Rogério Ceni no entrevero com o cartola.
Antes disso, por causa do comprometimento maior que o da maioria do elenco, comecei a chamar o goleiro de Mito, Depois, por avaliar a gestão como péssima, fiz isso ainda mais, inclusive nos programas da Rádio CBN, o que me rendeu alguns questionamentos profissionais.
Algumas pessoas se lembram.
José Diniz, jornalista da Gazeta e assessor de imprensa dele naquela fase, e André Carnielli, amigo que labutou dentro da casa do goleiro por cerca de uma década, foram alguns que acompanharam.
Esse último era goleiro nos jogos de brincadeira e fez um site em homenagem a ele muito antes de conhecê-lo, quando não havia nenhuma página do atleta na internet.
Apelidei simultaneamente o profissional de Mito e o amigo, fã incondicional daquele que hoje é conhecido pela alcunha, de 'falso mito', tal qual até hoje brinco.
Em suma, ela surgiu por causa da postura de Rogério Ceni, não pelas conquistas que, tenho absoluta convicção, fizeram o apelido pegar e ser firmado.
O voto que alterou tudo
Minha convicção que a gestão era muito ruim me fez preferir Marcelo Portugal Gouvêa, o escolhido pela oposição, zebra durante a campanha, na eleição contra Paulo Amaral, e de novo fui quase um dos únicos a apoiá-lo de maneira contumaz e pública durante a campanha.
O outro que me lembro foi Juca Kfouri, no CBN Esporte Clube, que referendava isso para o São Paulo ser forte novamente.
A reeleição representaria a manutenção da gestão que negociou atletas por fortunas e contratou mal, a maioria pagando pouco e com potencial maior de revenda que de ganhar torneios, além do provável fim de Rogério Ceni na agremiação.
Mas o resultado muito apertado e favorável à oposição alterou os rumos da história.
Se apenas um dos conselheiros que optaram por MPG tivesse alterado o voto haveria o empate e o então presidente, por ser o mais velho entre os dois, continuaria no cargo por mais dois anos.
Em suma, a saída de Rogério Ceni, assim como as posteriores conquistas do Mundial, Libertadores e do trinacional neste século, por uma bendita opção de conselheiro, puderam acontecer.
Foi Juvenal Juvêncio o principal articulador na campanha e quem implementou a política de formação do elenco campeão, tal qual é possível ler no post anterior do blog.
O início da era gloriosa
Desde 1996, quando Zetti foi negociado, o novo aposentado se tornou o o goleiro principal.
A terceira colocação no campeonato brasileiro em 2003 garantiu a classificação à Libertadores do ano seguinte, a primeira de Rogério Ceni para o torneio que mais aprecia.
O time foi eliminado na semifinal, como o treinador Cuca cita, no último minuto, com gol impedido do atleta pego no exame antidoping, mas a base foi mantida.
Finalmente realizou os sonhos
A forma do goleiro na parte técnica era impressionante naquele momento.
Como nunca foi dos mais simpáticos, os rivais faziam questão de falar que brilhava apenas por fazer gols em faltas e pênaltis.
Mas, embaixo das traves, se manteve entre os melhores do mundo por longo prazo, além de ser líder construtivo no elenco que tinha outros.
Aquela temporada na conquista da tríplice coroa foi a mais espetacular dele.
Em 2005 conseguiu sua maior artilharia da carreira e intervenções impressionantes, tudo coroado com aquela impossível, que nem ele mesmo conseguiria de novo, na decisão contra o Liverpool, em que Gerrard cobrou a falta no ângulo.
Rogério Ceni sequer tinha as condições atléticas ideais para atuar.
Ficou tanto com gelo no joelho, que seu quarto, no hotel de Yokohama, tinha o chão encharcado.
Quem lê o post e observa com senso crítico a dedicação do goleiro é capaz de compreender como seria para alguém tão obstinado não entrar naquele jogo.
O erro mais marcante
Na Copa Libertadores seguinte, ele falhou em um dos gols do Internacional no Beira-Rio, mas fez grande torneio.
Além disso, Lugano desperdiçou oportunidade e o maior problema do time, naqueles jogos, foram as escolhas de Muricy ao começar com Aloísio, na reserva, no Morumbi contra a agremiação que cometia equívocos na marcação dos cruzamentos, e principalmente, em Porto Alegre, ao se equivocar nas alterações.
O treinador havia falhado contra o Estudiantes, em Quilmes, mas o time, nos pênaltis, diante de seus torcedores conseguiu se classificar na série alternada de pênaltis, com a contribuição do goleiro que pegou o de Alayes.
Naquele ano, ele foi fundamental para o clube iniciar a até hoje inédita sequência de três conquistas seguidas no torneio de pontos corridos.
Não caiu de rendimento nos dois outros que completaram o tri e assim continuou mesmo quando os troféus rarearam.
O São Paulo não ficou no topo porque o elenco piorou e não por declínio técnico dele.
Mesmo assim, em 2009 bateu na trave para ganhar outro brasileirão e chegou à semifinal, ano seguinte, da Libertadores.
A natureza sempre é soberana
Não tenho como precisar, com exatidão, quando seu desempenho piorou para merecer questionamentos.
Minha impressão é que foi há 3 anos, sob o comando de Ney Franco, com quem teve entreveros desde quando o mandou colocar Cícero num jogo, houve a recusa e a afirmação do treinador de que é pago para escalar o time e o goleiro defender embaixo das traves.
O clima interno, com noticias infundadas sobre rejeição do elenco ao técnico, quando de fato havia um racha entre os jogadores sobre isso, tornaram inviável a formação de equipe consistente.
Desde então, aumentaram as oscilações no desempenho individual, a irritação notória quando não declarada com o que acontecia no CT da Barra Funda, e uma série de outras dificuldades.
Dali em diante não conseguiu mais ser o líder que o time necessita.
Acho que cometeu equívocos, mas, ressalto, crendo que fazia o melhor pela agremiação.
Não conseguiu assimilar a ideia de atletas com poucas realizações na carreira não terem determinação como a dele, Lugano, Fabão, Mineiro, Danilo, Josué e doutros com quem atuou.
Se aposentou com a mesma garra de ganhar, sendo o primeiro a chegar e o último a ir embora nos treinamentos.
Talvez devesse ter encerrado a carreira aos 39 anos, pois é normal que não seja capaz, porque o corpo não deixa, manter o padrão que exigia de si mesmo.
Mas não deve ser criticado por insistir, pois a gente, nesses momentos, demora a entender os recados da natureza e tenta ganhar dela, o que é uma utopia antropocentrista comum e fruto do jeito que a sociedade nociva para nós, a qual valoriza mais o resultado que o esforço para obtê-lo.
Polêmica inútil
Tanto faz se o Rogério Ceni foi o maior jogador desde a fundação do São Paulo.
A geração com cerca de 30 anos ou menos dirá que sim. Eu considero o Raí o maior.
Alguns, mais velhos, falam Zizinho, Canhoteiro, Leônidas, Maurinho, Roberto Dias, Pedro Rocha… e outros.
Isso é completamente irrelevante.
Todos agregaram muito para a história que tem o goleiro como recordista de jogos e um de seus maiores campeões.